Publicidade: A Expressão da Soberania Popular
O fundamento constitucional que garante o domínio cognitivo do povo sobre os atos do Estado
Resumo: Este artigo analisa a distinção semântica e jurídica entre os conceitos de "publicidade" e "transparência" no direito público brasileiro, destacando a centralidade constitucional da publicidade como garantia de soberania popular e controle social. Com base no art. 37, caput, da Constituição Federal de 1988, o texto argumenta que a publicidade representa o domínio cognitivo do povo sobre os atos estatais, enquanto a transparência, por ser filtrada, limita o acesso e pode fragilizar o controle democrático.
Nota de Agradecimento: Este entendimento foi profundamente influenciado pelas reflexões do Procurador Felipe Marcelo Gimenez, que destacou a diferença semântica entre publicidade e transparência como fundamento indispensável para a proteção da soberania popular e a integridade normativa da Constituição.
A distinção conceitual entre os termos "publicidade" e "transparência" possui relevância fundamental no âmbito do direito administrativo e constitucional, especialmente em relação à gestão da coisa pública. Compreender a diferença semântica entre essas palavras é essencial para evitar distorções na interpretação legal e na execução de princípios constitucionais. No contexto da Constituição Federal de 1988, o princípio consagrado é o da publicidade, e não o da transparência.
O princípio da publicidade, previsto no art. 37, caput, da Constituição, impõe que os atos da administração pública estejam acessíveis ao povo, com o objetivo de assegurar a legitimidade dos atos e permitir o controle social. A publicidade não é apenas a difusão de informação, mas a sua apropriação pelo povo. Trata-se de uma condição necessária para que o cidadão tenha domínio cognitivo sobre os atos administrativos, podendo compreendê-los, criticá-los e reagir à sua prática.
Em contrapartida, o conceito de transparência é semanticamente distinto. Transparência é a qualidade do que permite ver através. Quando aplicada à gestão pública, ela supõe um filtro: a informação visível é apenas aquela que se deixa atravessar pelo meio. A transparência não é plena, não garante soberania cognitiva ao cidadão, mas sim um acesso condicionado àquilo que se permite mostrar. Diferentemente da publicidade, ela não transfere o domínio da informação ao povo.
Essa diferença se reflete também na escolha de outros conceitos que têm sido utilizados indevidamente na discussão sobre a fiscalização da administração pública, como "confiança" e "auditoria". A confiança desloca o poder do cidadão para o agente, pois exige uma relação de crédito que se mostra incompatível com a soberania popular. A auditoria, por sua vez, transfere o controle do processo para um terceiro (o auditor), alijando o público da função de controle direto.
A substituição da publicidade por transparência e confiança no discurso jurídico pode ter efeitos deletérios. Ao fragilizar a compreensão constitucional dos direitos de soberania e de controle popular, abre-se espaço para interpretações arbitrárias. Assim, é imperativo que o discurso jurídico mantenha fidelidade à letra e ao espírito da Constituição.
Aplicação ao processo eleitoral: No contexto das eleições, a exigência de publicidade assume papel ainda mais relevante, sendo essencial para garantir a legitimidade do processo democrático. A Constituição impõe que os atos eleitorais sejam públicos, assegurando o domínio cognitivo do povo sobre cada etapa do processo. Isso inclui a publicidade do voto como direito subjetivo (sigilo da identidade do eleitor, mas escrutínio público), a contagem pública dos votos, a publicação imediata dos resultados em cada seção eleitoral, e a divulgação do código-fonte dos programas utilizados no sistema eletrônico de votação. A opacidade ou o mero acesso condicionado à informação – ainda que sob a alcunha de "transparência" – não supre a exigência de que o povo tenha pleno conhecimento e controle dos mecanismos que registram corretamente a sua vontade soberana nas urnas eletrônicas e no sistema eletrônico de votação, como um todo.
Referências normativas:
Gimenez, Felipe Marcelo. Reflexões sobre a publicidade como expressão da soberania popular. Comunicação pessoal, 2025.
Constituição Federal de 1988, art. 37, caput – Princípios da administração pública.
Lei nº 9.784/1999 – Regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal.
Constituição Federal de 1988, art. 14 – Sufrágio universal e voto direto e secreto, com valor igual para todos.
Lei nº 9.504/1997, arts. 58 a 66 – Fiscalização e transparência do processo eleitoral.
Conclusão: O princípio da publicidade assegura o domínio cognitivo do povo sobre os atos do Estado, conforme disposto no art. 37 da Constituição Federal. A defesa semântica rigorosa dos conceitos utilizados no direito é condição de possibilidade para a manutenção da legalidade, da soberania popular e da democracia material. No processo eleitoral, essa exigência ganha expressão concreta e inadiável, pois somente com a total visibilidade e domínio público sobre cada fase da eleição é que se preserva a integridade do regime democrático.