A proposta que pode mudar o jogo eleitoral
A criação da Agência Nacional Eleitoral propõe restaurar a separação dos Poderes e reconstruir a confiança no sistema eleitoral brasileiro.
Uma crise que ameaça o futuro
O Brasil vive um momento delicado. Uma crise institucional corroi os alicerces da democracia, com o Judiciário assumindo papéis que vão além de suas funções constitucionais. Decisões de cunho político tomadas por tribunais minam a separação dos Poderes, princípio consagrado no artigo 2º da Constituição Federal, que exige independência e harmonia entre Legislativo, Executivo e Judiciário.
O Informe Latinobarómetro 2024 revela que apenas um terço dos brasileiros confia no sistema eleitoral. O Brasil fica atrás de países como Chile e Uruguai, onde a confiança chega a 60%. Dados do IPEC 2024 reforçam esse cenário: o sistema eleitoral obteve apenas 54 pontos numa escala de 0 a 100, indicando confiança moderada. Isso evidencia que a confiança plena no TSE está longe de ser majoritária.
Como alertou Aldo Rebelo, ex-presidente da Câmara dos Deputados, "o país enfrenta uma insegurança institucional mais grave que a jurídica, onde as funções de cada Poder se confundem". Essa erosão progressiva compromete a confiança dos cidadãos no sistema democrático.
O problema do árbitro que também joga
No cerne dessa crise está o sistema eleitoral brasileiro, onde o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) controla tudo. Imagine um jogo de futebol em que o mesmo árbitro faz as regras, joga em um dos times, fiscaliza o campo e decide quem vence. Assim é o TSE hoje: ele escolhe um lado, elabora normas, desenvolve sistemas, executa eleições, fiscaliza sua própria aplicação e julga conflitos. Essa concentração de poderes viola o princípio da separação dos Poderes e cria conflitos de interesse estruturais.
Essa situação fragiliza a governança democrática. A ausência de segregação de funções compromete a imparcialidade percebida do processo eleitoral, minando a confiança pública. Um sistema eleitoral robusto não pode depender apenas da boa-fé de seus gestores, mas de mecanismos transparentes e auditáveis que garantam legitimidade.
A solução é a Agência Nacional Eleitoral
O caminho para reconstruir a confiança e pacificar o debate sobre a legitimidade das eleições começa com uma nova arquitetura institucional: a criação da Agência Nacional Eleitoral (ANE). Trata-se de um órgão autônomo vinculado ao Congresso Nacional, inspirado na Electoral Commission do Reino Unido. Criada em 2000, a comissão britânica separou as funções eleitorais, garantindo integridade e transparência às eleições. No Brasil, a ANE teria uma missão clara: organizar e executar eleições sob normas públicas e auditáveis, sem legislar, julgar ou se autoauditar.
Essa separação de funções alinha-se aos princípios constitucionais da impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (artigo 37 da Constituição). Ao transferir a execução das eleições para um órgão independente, o Brasil restauraria o equilíbrio entre os Poderes e fortaleceria a confiança no processo democrático.
Como a ANE funcionaria na prática
A ANE seria responsável por coordenar as eleições com transparência e rigor técnico. Suas principais funções incluiriam:
Certificação de urnas e sistemas digitais: A tarefa seria delegada a entidades técnicas independentes, credenciadas e auditadas, garantindo isenção e qualidade.
Auditorias transparentes: Partidos políticos e organizações da sociedade civil teriam acesso isonômico a dados e controles, permitindo a fiscalização baseada em evidências.
Padrões internacionais: A ANE adotaria práticas como o princípio da independência do software, desenvolvido pelo Professor Ronald Rivest, PhD do MIT. Esse conceito garante que qualquer alteração ou falha em sistemas eletrônicos seja detectável por auditorias externas, um pilar essencial para a confiabilidade eleitoral.[1]
Publicidade e proteção do sigilo: A ANE implantaria o comprovante impresso do voto, permitindo que o eleitor verifique sua escolha, e a contagem pública dos votos, além de remover dados pessoais do eleitor das urnas eletrônicas, eliminando qualquer possibilidade de violação do sigilo do voto.
A inspiração britânica é um exemplo concreto. A Electoral Commission do Reino Unido opera com autonomia, submetendo-se a normas claras e auditorias independentes. No Brasil, a ANE poderia seguir esse modelo, adaptando-o às particularidades nacionais, como a extensão territorial e a complexidade do sistema de votação eletrônica.
[1] Independência do software refere-se a um princípio técnico que assegura que sistemas eletrônicos, como urnas eletrônicas, sejam projetados para permitir auditorias externas que detectem qualquer alteração ou falha, garantindo a integridade do processo eleitoral.
Por que agora? A urgência da reforma
A criação da ANE não é apenas uma solução técnica, mas um imperativo democrático. Personalidades do direito e da política têm alertado para a urgência da questão. O jurista Modesto Carvalhosa cobra que o STF respeite seu papel de tribunal constitucional. O deputado Luiz Philippe de Orléans e Bragança alerta para os riscos crescentes do ativismo judicial.[2] O professor Luciano de Castro propõe um novo pacto constitucional para o país.
Alguns podem questionar como a ANE garantiria sua própria independência política ou como seria financiada. A proposta prevê que a ANE seja vinculada ao Congresso, com nomeações transparentes e apartidárias, e que seu orçamento seja definido por lei, com auditorias externas para evitar influências indevidas.
O momento para agir é agora. A tramitação do novo Código Eleitoral no Congresso Nacional oferece uma oportunidade única para instituir a ANE. Essa reforma não requer rupturas institucionais, mas um aperfeiçoamento técnico que alinha o Brasil às melhores práticas internacionais.
[2] Ativismo judicial ocorre quando juízes extrapolam suas funções constitucionais, tomando decisões que competem a outros Poderes, como o Legislativo ou o Executivo.
Uma oportunidade histórica
A democracia brasileira depende de quatro pilares: regras claras, execução imparcial, fiscalização independente e publicidade dos atos administrativos. A legitimidade das eleições não pode repousar apenas na autoridade de quem as conduz, mas em um sistema robusto, público e auditável.
A criação da ANE é mais que uma reforma técnica — é um passo para construir a confiança dos cidadãos e fortalecer as instituições. Com a polarização política e a falta de total confiança nas urnas eletrônicas, a ANE surge como uma solução para unir o país em torno de um processo eleitoral em que todos possam confiar.
O Congresso Nacional tem em suas mãos uma chance histórica de liderar essa transformação. Cabe aos parlamentares agir com coragem e responsabilidade, consolidando a democracia brasileira para as próximas gerações. A ANE não é apenas uma proposta, é um chamado à ação para garantir que o Brasil volte a ser uma democracia vibrante e confiável.